Proposta para a Construção de um Ecossistema de Empreendimentos Sustentáveis na Amazônia

22/04/2010

Floresta e clima: saber indígena e ciência

Este texto inspira-se na sensível sabedoria de Davi Kopenawa Yanomami, mas de modo mais geral, encampa uma modalidade de diálogo entre conhecimentos indígenas e aquele dos cientistas acadêmicos, sobre o manejo do mundo.

por Antonio Donato Nobre[2]


“Os brancos pensam que a floresta foi posta sobre o solo sem qualquer razão de ser, como se estivesse morta. Isso não é verdade. Ela só é silenciosa porque os espíritos xapiripë detêm os entes maléficos e a raiva dos seres da tempestade.

Davi Kopenawa



Em 2001 participei de um evento em Manaus, patrocinado por varias organizações indígenas e outras instituições, que propunha um diálogo entre povos nativos e outros atores no tema das mudanças climáticas[3]. Minha palestra, que veio depois da do Philip Fearnside, tencionava apresentar uma compreensivel visão científica do papel da floresta nas mudanças climáticas[4]. Falei sobre a fotossíntese, como as árvores sequestram gas carbônico, como a planta o utiliza, seu efeito na atmosfera e o efeito no clima. Mostrei fotos, gráficos coloridos, fiz paralelos e me virei do avesso para que a audiência, composta em grande parte por pessoas sem treinamento científico, pudesse compreender aqueles conhecimentos. No debate que se seguiu os cientistas foram duramente atacados. Um indígena, em tom irritado, afirmou que os cientistas pensavam que sabiam algo, mas que na verdade não sabiam nada. Os indios é que possuiam o saber da floresta. Que porque os cientistas tinham satélites achavam que podiam ver tudo, mas que não viam nada, era os olhos dos indios através dos olhos dos espiritos, que viam tudo. Sua intervenção foi seguida por outras, em tom semelhante e inflamado. Senti aos poucos o sangue ferver nas veias. Reconheci que o esforço para comunicar a ciência tinha fracassado. Tomei do microfone e pedi a palavra. Comecei contando do meu bisavô paterno, Mané Nunes, que saiu de uma tribo indígena em Minas Gerais e se casou com minha bisavó, que era negra. O branco da minha pele era a diluição européia da minha familia, mas que viera somente mais tarde. Portanto, me orgulhava de minhas raízes nativas e, com 1/16 de sangue indígena correndo nas veias, me sentia parente de todos naquele auditório. Continuei dizendo que havia vindo em paz e que não me parecia justo sofrer tais ataques. Depois fui ao cerne da questão: perguntei se os indígenas sabiam como ligar a fumaça que sai do escapamento de um automóvel com a alimentação das folhas nas árvores. No silêncio que se seguiu percebi que poderiamos finalmente começar um diálogo sincero e produtivo. Fiz então um apelo para que nos dispuséssemos a aprender uns com os outros, que precisávamos nos unir pelo bem comum e pela salvação da floresta. Expressei vontade de aprender com os indios, ver com olhos dos espíritos, e voluntariei para ensinar o que soubesse da ciência dos brancos. A conversa a partir daí foi boa, e para aquele pequeno grupo foi quebrado o gelo entre as duas visões de mundo.

Com este relato pessoal introduzo a linha filosófica deste texto. Não somente novos paradigmas de saber são necessários para a civilização global, mas precisamos de tradução de visões e de culturas, de diálogo que pressupõe humildade e de receptividade entre os saberes estabelecidos. A ciência, através da tecnologia e das engenharias, consagrou-se nos sistemas mundiais de poder, e tem enorme prestígio e influência. O saber indígena goza de respeito cultural e projeta uma importante aura de valor, mas infelizmente apenas é percebido e compreendido por poucas pessoas, tendo quase nenhuma influência sobre as ações humanas que estão transformando o planeta. Sam Johnston, da Universidade das Nações Unidas, afirmou na Cúpula Mundial dos Povos Indígenas sobre Mudança Climática[5]: “O mundo tem que prestar mais atenção às opiniões das comunidades indígenas e à sabedoria do conhecimento ancestral”. Então, seguindo este conselho e dando continuidade àquele fugaz diálogo iniciado em 2001, comento trechos selecionados da sabedoria ancestral indígena sobre a floresta e o clima, sabiamente expressos pelo Davi Kopenawa no prefácio do livro Urihi, a Terra-Floresta Yanomami[6].



“Se a floresta fosse morta, as árvores não teriam folhas brilhantes. Tampouco se veria água na terra. As árvores da floresta são belas porque estão vivas, só morrem quando são cortadas e ressecam. É assim. Nossa floresta é viva, e se os brancos nos fizerem desaparecer para desmatá-la e morar em nosso lugar, ficarão pobres e acabarão sofrendo de fome e sede.”



Somente vida resulta em brilho que enche os olhos. Folha que morre torna-se fosca, e imediatamente inicia sua decomposição. Com os olhos de peixes ou de gente ocorre o mesmo, o brilho some momentos após o passamento. A biologia, a fisiologia, a bioquimica e outros campos de estudo descrevem em detalhe cada vez maior os processos na base da vida, mas a vida em si, essa essência dinâmica e mutável que produz brilho e gera encantamento, continua sendo um mistério para a ciência. O professor Edward O. Wilson, famoso estudioso das formigas e da biodiversidade, propos existir uma afinidade da humanidade para com o mundo natural, e que todo ser humano tem programado em si um inato respeito pela vida[7]. Não obstante, a materialista cultura ocidental, que se tornou base filosófica da tecno-civilização global, tende a ignorar sua própria essência viva, e com isso tornou-se ignorante das consequências de seus atos no mundo. Os povos indígenas cultivaram e passaram de pai para filho um eficiente bom senso existencial, aprendido escutando seus espíritos e na observação e na vivência da Natureza, essa magnificiente obra de conforto e estabilidade que a própria vida criou no mundo ao longo de bilhões de anos. Portanto, em suas culturas originais os indios são guardiões ativos de um conhecimento sofisticado e vital para a coexistência e evolução de tudo que é e quer permanecer vivo.



“As folhas e as flores das árvores caem e acumulam-se no chão. É o que dá cheiro e fertilidade à floresta. Esse perfume desaparece quando a terra se torna seca demais, e os riachos se retraem nas suas profundezas. É o que acontece quando se corta e queima as grandes árvores, como as castanheiras, as sumaúmas e os jatobás. São elas que atraem a chuva. Só tem água na terra quando a floresta está com boa saúde.”



A epopéia científica no esclarescimento da reciclagem de nutrientes em florestas tropicais remonta à descoberta do papel dos nutrientes minerais no desenvolvimento das plantas pelo alemão Justus Liebig. A obtenção do entendimento precário sobre nutrientes no solo e seu papel no crescimento das plantas coincide com as famosas explorações naturalistas da Amazônia por Humboldt no século 19. Na visão incompleta de Liebig o viço das plantas dependeria dos nutrientes minerais fornecidos pela fertilidade dos solos. Então o jardim do Éden encontrado na América tropical deveria resultar de solos fertilíssimos. Mas paradoxalmente, aqueles eram talvez os mais pobres solos do mundo em nutrientes minerais. Somente da metade para o final do século 20 começa a ser explicado que a fertilidade da floresta é resultante de extraordinaria capacidade de reciclagem na eficiente decomposição de seus próprios detritos e poderosa filtragem da água da chuva. Um punhado de material do folhiço no chão da floresta, onde opera a fertilidade natural, tem mais organismos decompositores e recicladores que a população da China. Não muito tempo atrás fora descoberto que os nutrientes minerais nas poeiras do deserto do Saara atravessam o oceano Atlântico nos ventos de oeste[8], sobre a Amazônia são lavados da atmosfera pela chuva torrencial e depois são fornecidos às raizes pela esponja de fungos filtradores no estômago da floresta. Sim, o brilho das plantas precisa de nutrientes, mas é a vida em sua miríade de formas, criatividade engenhosa e paciência de milênios que consegue inventar tão elegantes sistemas de nutrição à distância.

Os riquíssimos perfumes da floresta são compostos orgânicos voláteis liberados por plantas e outros organismos numa variedade de situações. Namoro, defesa de ataques, convite para o banquete são apenas algumas das múltiplas funções destes mensageiros químicos. Mas a ligação mais extraordinária, implícita na descrição do Davi Kopenawa, é com a água e com o ambiente. Os compostos voláteis têm papel crítico na proteção das folhas contra o calor do sol. Também são antioxidantes liberados no ar para remover poluentes perigosos, como o ozônio e outros óxidos de nitrogênio e enxofre. Este papel de ativas vassourinhas químicas explica porque o ar da floresta é saudável, o ar mais limpo da Terra, superando em pureza o ar de áreas remotas no Pacífico ou na Antártida. Desempenham assim papel equivalente aos antioxidantes que ingerimos, só que na forma gasosa, para toda a comunidade e para o mundo, uma vitamina C generosa e democrática. Recentemente diversas pesquisas feitas no projeto LBA se depararam com um papel ainda mais surpreendente para os perfumes da floresta, a formação de nuvens e a promoção de chuvas copiosas. A Amazônia foi apelidada pelos meteorologistas deste projeto como um oceano verde, porque seu ar é tão limpo de sujeiras quanto o ar do oceano azul. Mas são as partículas que iniciam a formação de gotas no ar por condensação de vapor de água. Chove muito pouco no oceano azul, então porque chove tanto no oceano verde da Amazônia? Os compostos orgânicos voláteis, como terpenos e isoprenos, entre centenas de outros, quando estão lá em cima na atmosfera, oxidam e formam partículas orgânicas finíssimas, com grande afinidade pela água. Atraem assim o vapor de água e este condensa-se em sua superficie formando a gota, muitas gotas formam a nuvem. O oceano verde supre uma quantidade limitada destas partículas para o ar. Relativamente poucas partículas junto com enorme quantidade de vapor de água, este fornecido na maior parte pela transpiração das árvores, as gotas formadas crescem grandes e pesadas. É a base do aguaceiro vespertino que mantém toda a floresta viva e brilhante.



“Quando ela está nua, desprotegida, Mofokari, o ente solar, queima os igarapés e os rios. Ele os seca com sua língua de fogo e engole seus peixes. E quando seus pés se aproximam do chão da floresta, ele endurece e fica ardendo. Nada mais pode brotar nele. Não tem mais raízes e sementes na umidade do solo. As águas fogem para muito longe. Então, o vento que as seguia e nos refrescava como um abano se esconde também. Um calor escaldante paira em todos os lugares. As folhas e flores que ainda estão no chão ressecam e encolhem. Todas as minhocas da terra morrem. O perfume da floresta queima e desaparece. Nada mais cresce. A fertilidade da floresta vai para outras terras.”



O desmatamento destrói o oceano verde, extingue o mecanismo elaborado e eficiente de promoção de chuvas via os compostos orgânicos voláteis. Remove as árvores, a fonte abundante de vapor de água para a atmosfera, deixando o ar mais seco, e injeta quantidade excessiva de partículas no ar, pela poeira do solo e pela fuligem das queimadas. Muitas partículas e pouco vapor têm o efeito de matar as chuvas, formam-se nuvens dissipativas que não precipitam no verão e nuvens destrutivas, carregadas de gelo e eletricidade no inverno. No oceano verde a evaporação abundante da água era um resfriador que produzia conforto, mas a falta de água nas áreas destruídas faz com que a inclemência do sol equatorial seja tranformada em calor escaldante. Esse é o processo da desertificação. Todos os nutrientes que antes participavam na festa da vida estão agora reduzidos a cinzas, mesclados na areia do deserto. E o violento vento das tempestades, que os espíritos xapiripë nao mais deterão, carregarão de fato esta fertilidade para outras terras, como no Saara, que um dia já teve florestas tão verdes quanto as nossas.



“Ela não se decompõe. É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem. Quando estamos muito doentes, em estado de espectro, ele também ajuda na nossa cura. Vocês não vêem, mas a floresta respira. Olhem para ela: suas árvores estão bem vivas e suas folhas brilham. Se ela não tivesse sopro, as árvores estariam secas. Esse sopro vem do fundo da terra, lá onde repousa seu frescor. Ele também está em suas águas.”



Descoberta ainda mais recente, a floresta não faz somente sua própria chuva, ela também traz o vento de longe, vento esse que carrega para dentro do continente a fonte primordial da vida, a água evaporada do oceano. Sem este vento bombeado pela floresta os continentes seriam áridos. Inspirados pela Amazônia e baseados na compreensão básica de como opera a Natureza, dois físicos russos, Viktor Gorshkov e Anastassia Makarieva, descobriram como a floresta é vital neste ciclo da água[9]. Por conta de sua altura, forma e arquitetura, as árvores são evaporadores muito eficientes. Uma árvore grande chega a transpirar mais de 300 litros de água num dia, uma quantidade que somada para toda Amazônia resulta num rio voador de vapor que transporta mais água do que o portentoso rio Amazonas. O que eles descobriram é que o vapor de água colocado pelas folhas no ar empurra o ar para o lado, aumentando a pressão ali. Depois, lá em cima onde fica mais frio e onde estão atuando as partículas de condensação, o ar úmido perde vapor que volta a formar água líquida nas gotas, sumindo da parte gasosa, diminuindo assim a pressão. Essa diminuição da pressão promovida pela condensação da água proveniente da floresta é como um aspirador que suga o ar da superfície para cima, mantendo a evaporação e as chuvas. Como o ar sugado da superfície precisa ser reposto, a sucção se transmite horizontalmente pelas terras até o oceano, formando assim a bomba biótica que faz os ventos soprarem de longe, trazendo a água do oceano para dentro do continente. Aí, a floresta que trouxe os ventos úmidos e as chuvas se beneficia alegremente, devolvendo mais água e seus perfumes para o ar, permitindo e favorecendo mais vida, num ciclo virtuoso infindável.



“A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo. O dos seres humanos é muito menor: vivemos e morremos depressa. Se não a desmatarmos, a floresta não morrerá.”



Em novembro de 1992, um grupo congregando mais de 1.500 cientistas saídos do topo da lista de maiores da ciência, publicou um apelo intitulado Alerta dos Cientistas do Mundo para a Humanidade:


"Os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão. Atividades humanas infligem danos severos e frequentemente irreversíveis ao ambiente e a seus recursos vitais. Se não reavaliadas, muitas das nossas práticas correntes colocam em sério risco o futuro que queremos para a sociedade humana, e assim podem alterar o mundo vivo de tal forma que este será incapaz de dar suporte para a vida da forma que conhecemos. Mudanças fundamentais são urgentes se quisermos evitar a colisão que nosso presente curso irá trazer... Não temos mais que uma ou algumas décadas antes que a oportunidade de desviar as ameaças que enfrentamos agora venha a se perder e as perspectivas para a humanidade venham a ficar imensuravelmente diminuídas. Se uma vasta miséria humana precisa ser evitada e se o nosso lar global neste planeta não pode ser irremediavelmente mutilado, exige-se uma grande mudança em nossa atitude com relação a Terra e sua vida.”


Apesar deste e outros alertas partirem da ciência, infelizmente a arrogância e a imaturidade ao longo dos últimos séculos de desenvolvimento reducionista permitiram e estimularam a humanidade a extrapolar os limites da vida, e com isso levar o planeta a uma crise espantosa. Mas dentro da própria evolução do conhecimento científico, com a recente reconexão das disciplinas, começa a emergir a poderosa verdade singela, de respeito à vida, que a civilização tecno-materialista esqueceu e que agora terá que reaprender. E neste particular os Yanomami e outro povos indígenas têm muito a ensinar.

Quando por primeira vez escutei a declamação (porque também é um poema) deste texto do Davi Kopenawa, em dezembro de 2006, fui acometido por forte emoção e enorme assombro. Como era possível que os Yanomamis, que do meu conhecimento nunca desmataram extensivamente suas florestas nem desenvolveram pesquisas científicas como nós fazemos, soubessem das consequências do desmatamento, das ligações entre os aromas e as chuvas entre tantos outros avançados saberes que tem? Encontrei o Davi um tempo depois e lhe perguntei diretamente, como sabiam tais coisas, se para a ciência chegar próximo a este conhecimento eram necessárias décadas de suor, milhares de cabeças pensando, supercomputadores calculando, laboratórios analisando, satélites imageando. A singela resposta dele foi aproximadamente: “os sábios espiritos da floresta nos ensinaram e nós não nos esquecemos.” Se existe um caminho mais curto, da síntese do saber e do respeito pela complexidade da vida, quanto poderemos evoluir como civilização global quando reaprendermos a humildade e re-habilitarmos a receptiva intuição?




Bibliografia


Albert, B.; Milliken, W.; Goodwin-Gomez G. Urihi , A terra-floresta yanomami. ISA, IRD, 2009.

Koren, I.; Kaufman, Y. J.; Washington, R.; Todd, M. C.; Rudich, Y.; Martins, J. V.; and Rosenfeld, D. The Bodélé depression: a single spot in the Sahara that provides most of the mineral dust to the Amazon forest. Environ. Res. Lett. 1, 2006.

Makarieva, A. M.; Gorshkov, V. G. Biotic pump of atmospheric moisture as driver of the hydrological cycle on land. Hydrology and Earth System Sciences, 11, 1013-1033, 2007

Wilson, E. O. Biophilia, the human bond with other species. Harvard University Press, 1984.



[1] Este texto foi extraido do Livro Manejo do Mundo, Conhecimentos e Praticas dos Povos Indigenas do Rio Negro, publicado em abril de 2010 pelo Instituto Socio Ambiental, ISA, em associacao com a Federacao das Organizacoes Indigenas do Rio Negro, FOIRN.

COMPRAR O LIVRO

[2] Antonio Donato Nobre é pesquisador pleno do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia, INPA, e pesquisador visitante no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE

[3] Fórum Indígena Amazônico sobre Mudança Climática, COIAB, COICA, FOIRN, CIR, CNS, INPA, IPAM, IPAAM, IBAMA, GTZ, GREENPEACE, SEDUC/AM, FEPI, CPT, CIMI, UFRJ, TNC, PDPI PDA/PPG-7, Aliança Amazônica, Museu Nacional

[4] Trocas de carbono da floresta com a atmosfera e beneficios para populações indígenas.

[5] Anchorage, Alaska, 2009.

[6] Albert. B. et al., 2009.

[7] Wilson, E.O.,, 1984.

[8] Koren, I. et al., 2006

[9] Makarieva et al., 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário