Proposta para a Construção de um Ecossistema de Empreendimentos Sustentáveis na Amazônia

30/04/2010

Pesquisa & Desenvolvimento: Segredo de sucesso econômico no mundo globalizado



Para desenvolver uma complexa rede de sustentabilidade baseada em uma família de empreendimentos nas comunidades de prática, com participação de todas comunidades de interesse90, existe a necessidade de um envolvimento especial da comunidade do conhecimento. Como se vê em praticamente todas as histórias de sucesso econômico do mundo moderno, um engajamento comprometido e continuado da ciência e da tecnologia nos empreendimentos é condição sine qua non.

No Brasil os exemplos destas associações são muitos e candentes. Sem a qualidade da pesquisa agronômica aplicada feita na EMBRAPA91 não haveria o sucesso presente da agricultura no cerrado, sem a intrepidez da pesquisa de engenharia feita no CENPES da Petrobras não haveria exploração de petróleo em águas profundas. Sucessos como estes são inúmeros, e também inúmeros são os exemplos de fracassos retumbantes de empreendimentos onde a comunidade do conhecimento ou não é chamada, ou não quer se envolver ou ela mesma é pouco desenvolvida. Neste sentido, a Amazônia coleciona um grande número de fracassos por padecer gravemente desta desconexão. Uma das principais razões para tal quadro é a própria inanição da comunidade científica residente92. Mas mesmo quando existe fomento direto para pesquisas engajadas, como foi o caso com o PPG793, as agendas científicas exibem tipicamente a perspectiva acadêmica, sem um compromisso de longo prazo com a implementação comercial dos resultados da pesquisa. É lugar comum na academia que uma vez terminado um determinado financiamento, com artigos científicos publicados, o time de pesquisa segue adiante para algum outro assunto e outro financiamento. Mas é também característico que os programas de financiamento de pesquisa não financiem especificamente atividades e abordagens que brindem o sucesso de empreendimentos nas comunidades de prática.

Mas seriam estes os únicos fatores para as grandes dificuldades da P&D com viés prático na Amazônia? Analisemos um exemplo emblemático. Por décadas a EMBRAPA investiu no desenvolvimento de tecnologias para adequar a seringueira ao plantio homogêneo na Amazônia. Diferente do sudeste asiático e mesmo de áreas de exclusão fitossanitaria no Brasil (SP, BA, etc.), a Amazônia concentra condições climáticas ideais para o desenvolvimento do fungo Microcyclus uley que produz o mal das folhas94. Este fungo é um inimigo natural da seringueira, então como a planta sobrevive e produz látex na selva nativa?

A ecologia ensina que em ecossistemas complexos como a floresta Amazônica uma das
principais estratégias de defesa que as plantas usam contra seus inimigos naturais é
dispersarem-se na enorme salada de biodiversidade da floresta não perturbada, contando
com a improbabilidade estatística de serem encontradas. Por esta razão as árvores nativas
da floresta, como a seringueira, desenvolveram elaborados mecanismos para garantir sua
esparsa dispersão na floresta, nunca ocorrendo em grandes agrupamentos de indivíduos, como
ocorre nos plantios artificiais homogêneos. Quando uma tecnologia aparentemente bem
sucedida da EMBRAPA para viabilizar plantios homogêneos na Amazônia foi finalmente
testada (enxertia dupla com raiz de uma variedade, tronco de outra e copa de uma terceira
que resiste ao mal das folhas) a economia demonstrou que era mais barato plantar a
seringueira não-tecnológica fora da Amazônia, e todo o investimento nesta tecnologia ficou
sub-utilizado.

Para dimensionar a implicação deste exemplo de pesquisa aplicada mal sucedida nas propostas
do Fênix Amazônico comparemos os dois centros de excelência em pesquisa aplicada mencionados no inicio desta seção. O CENPES da Petrobras faz pesquisa aplicada e desenvolvimento de tecnologia para extração e processamento de uma substancia orgânica
inerte, o petróleo; a EMBRAPA faz pesquisa aplicada e desenvolvimento de tecnologia com
organismos vivos, ecossistemas e ambientes visando a produção de alimentos, vestuário,
combustíveis e uma grande variedade de outros produtos orgânicos. Embora a extração e
processamento de petróleo possa ter enorme impacto potencial sobre organismos e ecossistemas, este impacto tende a ocorrer raramente, em acidentes. Já a manipulação direta de organismos, ecossistemas e ambientes tem o impacto sobre os mesmos como précondição, inerente à própria atividade. Em outras palavras, todas as atividades de melhoramento genético de plantas ou animais, desenvolvimento de técnicas de cultivo ou criação e de técnicas de processamento, entre outras atividades de manipulação, leva inexoravelmente a impactos biológicos, ecológicos e ambientais. O problema identificado no contraste destas duas renomadas instituições de pesquisa aplicada é que o substrato temático da EMBRAPA (biologia, ecologia, bioquímica, genética, biogeoquímica, sociologia, economia, engenharia, pedologia, química, e dezenas de outras disciplinas) reúne complexidade muitas ordens de magnitude superior ao substrato temático do CENPES (química orgânica, geologia, oceanografia, engenharia, economia, química e poucas mais)95. Não obstante, as filosofias de trabalho das duas instituições, em termos de abordagens e valores, não são muito diferentes. Em função da ciência básica estar na maioria das vezes muito distante das questões aplicadas, uma abordagem comum de engenheiros e tecnologistas para a P&D é valer-se de aproximações empíricas, usar tentativa e erro. Nesse contexto, simplificar passa a ser essencial para o desenvolvimento de soluções práticas. Naturalmente que quando um novo conhecimento básico torna-se disponível estes pesquisadores tenderão a assimilá-lo rapidamente, tirando os melhores benefícios nas suas implicações práticas. Mas como indicado anteriormente (ao longo do projeto Fenix Amazônico), organismos, ecossistemas e a própria biosfera, em função de sua complexidade não se rendem a simplificações sem cobrar um preço alto nas conseqüências.

E aqui surge clara a razão das muitas debilidades em termos de resultados práticos da pesquisa aplicada na Amazônia. Como os ecossistemas Amazônicos são absolutamente superlativos em termos de complexidade, a simplificação aplicada a estes para desenvolvimento de soluções verticais típicas da visão de engenheiros e tecnologistas tem logicamente que terminar mal. Mesmo quando uma dada tecnologia vertical aparentemente resolve o desafio reducionista a que se propôs (como no caso da seringueira com dupla enxertia), outros fatores inerentes às múltiplas dimensões de complexidade na Amazônia acabam por lançar a solução à pilha de peças inteligentes, mas inservíveis na construção de sistemas produtivos, competitivos, atraentes e sustentáveis. Qual seria então o caminho para que a pesquisa aplicada produzisse soluções com melhor sorte para o desenvolvimento da Amazônia?

Como sugerido anteriormente, o sistema natural cuja evolução levou dezenas de milhões de anos apresenta um repertorio incomparável de “soluções” com grande potencial para utilização e desenvolvimento. Uma nova disciplina na área da engenharia está nascendo no primeiro mundo com o nome de biomimética. Uma das primeiras façanhas desta nova disciplina foi revelar que a borboleta Morpho da Amazônia produz aquele azul iridescente de sua asa sem o uso de qualquer pigmento azul, mas com nanométricos cristais fotônicos que manipulam a luz de modo muito mais sofisticado do que qualquer micro aparato ótico em avançadas redes de fibra ótica de alta velocidade. Sem demora os pesquisadores ingleses 96 autores da investigação copiaram as tais nano estruturas orgânicas em silício e reproduziram o efeito em laboratório. Também sem demora estes pesquisadores patentearam seu desenvolvimento, e muito provavelmente nós, que possuímos a Morpho em nosso patrimônio de biodiversidade, estaremos pagando royalties para aquele grupo distante. A lição que fica é que a biodiversidade não representa apenas um patrimônio vivo de valor poético e ecológico, ela concentra trilhões de dólares potenciais em tecnologias sofisticadíssimas que estão à disposição da nossa sociedade se soubermos aproveitá-las. Basta que primeiro saibamos substituir motoserras, correntões, fogo, soja, boi, eucaliptos e similares por avançados laboratórios de pesquisa que não somente estudem o tesouro verde de modos convencionais, como faz monotonamente a ciência básica, mas que busquem soluções práticas através da sofisticação biológica, que possam ser aproveitadas em sistemas produtivos dentro da Amazônia.

O ecossistema Fênix Amazônico propõe então uma estratégia-ponte entre pesquisa básica e aplicada para funcionar como um catalisador ao sucesso da P&D na Amazônia: o desenvolvimento de uma nova disciplina, a ecomimética. Similar à biomimética, a ecomimética será um novo ramo da engenharia que estudará que mecanismos os organismos e os ecossistemas usam para resolver desafios ambientais relevantes para a sobrevivência e para manter-se produtivos. Esta não será uma disciplina reducionista no sentido convencional, embora venha a usar ferramentas específicas e poderosas desenvolvidas por uma gama de outras disciplinas. Como ciência integradora, ela emprestará os conhecimentos fundamentais das ciências básicas, mas irá além empregando também o pragmatismo das ciências aplicadas, produzindo assim uma sinergia com potencial de produzir soluções tecnológicas de grande valor intrínseco, mas casadas já de nascença com diminuído potencial de impacto biológico e ambiental. Cremos que nenhum outro País tem melhores condições para o florescimento espetacular da ecomimética que o Brasil, o País Verde e berço de Santos Dumont.

Notas

90 Comunidade de interesse (stakeholder) difere da comunidade de prática (caretaker) porque a última refere-se mais àqueles grupos e
pessoas diretamente envolvidos no empreendimento, nas fronteiras rurais, enquanto que a primeira engloba todos os participantes e
parceiros.

91 A EMBRAPA, precisa ser dito logo de início, tem uma série de abordagens com grande potencial em termos de respostas às demandas ambientais e ecológicas. Áreas como sistemas de produção sustentável e uso sustentável de recursos naturais são tradicionais na empresa.
Novas áreas como sistemas de produção agroenergéticos, segurança alimentar, biologia avançada e nanotecnologia prometem muito em termos de tecnologias com potencial para emprego na Amazônia.

92 A Amazônia produz 7% do PIB Brasileiro, mas a pesquisa científica Amazônica recebe apenas 0,2% dos recursos federais para Ciência & Tecnologia.

93 Programa de Pesquisa e Desenvolvimento (PPD) do programa piloto para a proteção das florestas tropicais Brasileiras PPG7 www.mct.gov.br/prog/ppg7/Default.htm

22/04/2010

Floresta e clima: saber indígena e ciência

Este texto inspira-se na sensível sabedoria de Davi Kopenawa Yanomami, mas de modo mais geral, encampa uma modalidade de diálogo entre conhecimentos indígenas e aquele dos cientistas acadêmicos, sobre o manejo do mundo.

por Antonio Donato Nobre[2]


“Os brancos pensam que a floresta foi posta sobre o solo sem qualquer razão de ser, como se estivesse morta. Isso não é verdade. Ela só é silenciosa porque os espíritos xapiripë detêm os entes maléficos e a raiva dos seres da tempestade.

Davi Kopenawa



Em 2001 participei de um evento em Manaus, patrocinado por varias organizações indígenas e outras instituições, que propunha um diálogo entre povos nativos e outros atores no tema das mudanças climáticas[3]. Minha palestra, que veio depois da do Philip Fearnside, tencionava apresentar uma compreensivel visão científica do papel da floresta nas mudanças climáticas[4]. Falei sobre a fotossíntese, como as árvores sequestram gas carbônico, como a planta o utiliza, seu efeito na atmosfera e o efeito no clima. Mostrei fotos, gráficos coloridos, fiz paralelos e me virei do avesso para que a audiência, composta em grande parte por pessoas sem treinamento científico, pudesse compreender aqueles conhecimentos. No debate que se seguiu os cientistas foram duramente atacados. Um indígena, em tom irritado, afirmou que os cientistas pensavam que sabiam algo, mas que na verdade não sabiam nada. Os indios é que possuiam o saber da floresta. Que porque os cientistas tinham satélites achavam que podiam ver tudo, mas que não viam nada, era os olhos dos indios através dos olhos dos espiritos, que viam tudo. Sua intervenção foi seguida por outras, em tom semelhante e inflamado. Senti aos poucos o sangue ferver nas veias. Reconheci que o esforço para comunicar a ciência tinha fracassado. Tomei do microfone e pedi a palavra. Comecei contando do meu bisavô paterno, Mané Nunes, que saiu de uma tribo indígena em Minas Gerais e se casou com minha bisavó, que era negra. O branco da minha pele era a diluição européia da minha familia, mas que viera somente mais tarde. Portanto, me orgulhava de minhas raízes nativas e, com 1/16 de sangue indígena correndo nas veias, me sentia parente de todos naquele auditório. Continuei dizendo que havia vindo em paz e que não me parecia justo sofrer tais ataques. Depois fui ao cerne da questão: perguntei se os indígenas sabiam como ligar a fumaça que sai do escapamento de um automóvel com a alimentação das folhas nas árvores. No silêncio que se seguiu percebi que poderiamos finalmente começar um diálogo sincero e produtivo. Fiz então um apelo para que nos dispuséssemos a aprender uns com os outros, que precisávamos nos unir pelo bem comum e pela salvação da floresta. Expressei vontade de aprender com os indios, ver com olhos dos espíritos, e voluntariei para ensinar o que soubesse da ciência dos brancos. A conversa a partir daí foi boa, e para aquele pequeno grupo foi quebrado o gelo entre as duas visões de mundo.

Com este relato pessoal introduzo a linha filosófica deste texto. Não somente novos paradigmas de saber são necessários para a civilização global, mas precisamos de tradução de visões e de culturas, de diálogo que pressupõe humildade e de receptividade entre os saberes estabelecidos. A ciência, através da tecnologia e das engenharias, consagrou-se nos sistemas mundiais de poder, e tem enorme prestígio e influência. O saber indígena goza de respeito cultural e projeta uma importante aura de valor, mas infelizmente apenas é percebido e compreendido por poucas pessoas, tendo quase nenhuma influência sobre as ações humanas que estão transformando o planeta. Sam Johnston, da Universidade das Nações Unidas, afirmou na Cúpula Mundial dos Povos Indígenas sobre Mudança Climática[5]: “O mundo tem que prestar mais atenção às opiniões das comunidades indígenas e à sabedoria do conhecimento ancestral”. Então, seguindo este conselho e dando continuidade àquele fugaz diálogo iniciado em 2001, comento trechos selecionados da sabedoria ancestral indígena sobre a floresta e o clima, sabiamente expressos pelo Davi Kopenawa no prefácio do livro Urihi, a Terra-Floresta Yanomami[6].



“Se a floresta fosse morta, as árvores não teriam folhas brilhantes. Tampouco se veria água na terra. As árvores da floresta são belas porque estão vivas, só morrem quando são cortadas e ressecam. É assim. Nossa floresta é viva, e se os brancos nos fizerem desaparecer para desmatá-la e morar em nosso lugar, ficarão pobres e acabarão sofrendo de fome e sede.”



Somente vida resulta em brilho que enche os olhos. Folha que morre torna-se fosca, e imediatamente inicia sua decomposição. Com os olhos de peixes ou de gente ocorre o mesmo, o brilho some momentos após o passamento. A biologia, a fisiologia, a bioquimica e outros campos de estudo descrevem em detalhe cada vez maior os processos na base da vida, mas a vida em si, essa essência dinâmica e mutável que produz brilho e gera encantamento, continua sendo um mistério para a ciência. O professor Edward O. Wilson, famoso estudioso das formigas e da biodiversidade, propos existir uma afinidade da humanidade para com o mundo natural, e que todo ser humano tem programado em si um inato respeito pela vida[7]. Não obstante, a materialista cultura ocidental, que se tornou base filosófica da tecno-civilização global, tende a ignorar sua própria essência viva, e com isso tornou-se ignorante das consequências de seus atos no mundo. Os povos indígenas cultivaram e passaram de pai para filho um eficiente bom senso existencial, aprendido escutando seus espíritos e na observação e na vivência da Natureza, essa magnificiente obra de conforto e estabilidade que a própria vida criou no mundo ao longo de bilhões de anos. Portanto, em suas culturas originais os indios são guardiões ativos de um conhecimento sofisticado e vital para a coexistência e evolução de tudo que é e quer permanecer vivo.



“As folhas e as flores das árvores caem e acumulam-se no chão. É o que dá cheiro e fertilidade à floresta. Esse perfume desaparece quando a terra se torna seca demais, e os riachos se retraem nas suas profundezas. É o que acontece quando se corta e queima as grandes árvores, como as castanheiras, as sumaúmas e os jatobás. São elas que atraem a chuva. Só tem água na terra quando a floresta está com boa saúde.”



A epopéia científica no esclarescimento da reciclagem de nutrientes em florestas tropicais remonta à descoberta do papel dos nutrientes minerais no desenvolvimento das plantas pelo alemão Justus Liebig. A obtenção do entendimento precário sobre nutrientes no solo e seu papel no crescimento das plantas coincide com as famosas explorações naturalistas da Amazônia por Humboldt no século 19. Na visão incompleta de Liebig o viço das plantas dependeria dos nutrientes minerais fornecidos pela fertilidade dos solos. Então o jardim do Éden encontrado na América tropical deveria resultar de solos fertilíssimos. Mas paradoxalmente, aqueles eram talvez os mais pobres solos do mundo em nutrientes minerais. Somente da metade para o final do século 20 começa a ser explicado que a fertilidade da floresta é resultante de extraordinaria capacidade de reciclagem na eficiente decomposição de seus próprios detritos e poderosa filtragem da água da chuva. Um punhado de material do folhiço no chão da floresta, onde opera a fertilidade natural, tem mais organismos decompositores e recicladores que a população da China. Não muito tempo atrás fora descoberto que os nutrientes minerais nas poeiras do deserto do Saara atravessam o oceano Atlântico nos ventos de oeste[8], sobre a Amazônia são lavados da atmosfera pela chuva torrencial e depois são fornecidos às raizes pela esponja de fungos filtradores no estômago da floresta. Sim, o brilho das plantas precisa de nutrientes, mas é a vida em sua miríade de formas, criatividade engenhosa e paciência de milênios que consegue inventar tão elegantes sistemas de nutrição à distância.

Os riquíssimos perfumes da floresta são compostos orgânicos voláteis liberados por plantas e outros organismos numa variedade de situações. Namoro, defesa de ataques, convite para o banquete são apenas algumas das múltiplas funções destes mensageiros químicos. Mas a ligação mais extraordinária, implícita na descrição do Davi Kopenawa, é com a água e com o ambiente. Os compostos voláteis têm papel crítico na proteção das folhas contra o calor do sol. Também são antioxidantes liberados no ar para remover poluentes perigosos, como o ozônio e outros óxidos de nitrogênio e enxofre. Este papel de ativas vassourinhas químicas explica porque o ar da floresta é saudável, o ar mais limpo da Terra, superando em pureza o ar de áreas remotas no Pacífico ou na Antártida. Desempenham assim papel equivalente aos antioxidantes que ingerimos, só que na forma gasosa, para toda a comunidade e para o mundo, uma vitamina C generosa e democrática. Recentemente diversas pesquisas feitas no projeto LBA se depararam com um papel ainda mais surpreendente para os perfumes da floresta, a formação de nuvens e a promoção de chuvas copiosas. A Amazônia foi apelidada pelos meteorologistas deste projeto como um oceano verde, porque seu ar é tão limpo de sujeiras quanto o ar do oceano azul. Mas são as partículas que iniciam a formação de gotas no ar por condensação de vapor de água. Chove muito pouco no oceano azul, então porque chove tanto no oceano verde da Amazônia? Os compostos orgânicos voláteis, como terpenos e isoprenos, entre centenas de outros, quando estão lá em cima na atmosfera, oxidam e formam partículas orgânicas finíssimas, com grande afinidade pela água. Atraem assim o vapor de água e este condensa-se em sua superficie formando a gota, muitas gotas formam a nuvem. O oceano verde supre uma quantidade limitada destas partículas para o ar. Relativamente poucas partículas junto com enorme quantidade de vapor de água, este fornecido na maior parte pela transpiração das árvores, as gotas formadas crescem grandes e pesadas. É a base do aguaceiro vespertino que mantém toda a floresta viva e brilhante.



“Quando ela está nua, desprotegida, Mofokari, o ente solar, queima os igarapés e os rios. Ele os seca com sua língua de fogo e engole seus peixes. E quando seus pés se aproximam do chão da floresta, ele endurece e fica ardendo. Nada mais pode brotar nele. Não tem mais raízes e sementes na umidade do solo. As águas fogem para muito longe. Então, o vento que as seguia e nos refrescava como um abano se esconde também. Um calor escaldante paira em todos os lugares. As folhas e flores que ainda estão no chão ressecam e encolhem. Todas as minhocas da terra morrem. O perfume da floresta queima e desaparece. Nada mais cresce. A fertilidade da floresta vai para outras terras.”



O desmatamento destrói o oceano verde, extingue o mecanismo elaborado e eficiente de promoção de chuvas via os compostos orgânicos voláteis. Remove as árvores, a fonte abundante de vapor de água para a atmosfera, deixando o ar mais seco, e injeta quantidade excessiva de partículas no ar, pela poeira do solo e pela fuligem das queimadas. Muitas partículas e pouco vapor têm o efeito de matar as chuvas, formam-se nuvens dissipativas que não precipitam no verão e nuvens destrutivas, carregadas de gelo e eletricidade no inverno. No oceano verde a evaporação abundante da água era um resfriador que produzia conforto, mas a falta de água nas áreas destruídas faz com que a inclemência do sol equatorial seja tranformada em calor escaldante. Esse é o processo da desertificação. Todos os nutrientes que antes participavam na festa da vida estão agora reduzidos a cinzas, mesclados na areia do deserto. E o violento vento das tempestades, que os espíritos xapiripë nao mais deterão, carregarão de fato esta fertilidade para outras terras, como no Saara, que um dia já teve florestas tão verdes quanto as nossas.



“Ela não se decompõe. É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem. Quando estamos muito doentes, em estado de espectro, ele também ajuda na nossa cura. Vocês não vêem, mas a floresta respira. Olhem para ela: suas árvores estão bem vivas e suas folhas brilham. Se ela não tivesse sopro, as árvores estariam secas. Esse sopro vem do fundo da terra, lá onde repousa seu frescor. Ele também está em suas águas.”



Descoberta ainda mais recente, a floresta não faz somente sua própria chuva, ela também traz o vento de longe, vento esse que carrega para dentro do continente a fonte primordial da vida, a água evaporada do oceano. Sem este vento bombeado pela floresta os continentes seriam áridos. Inspirados pela Amazônia e baseados na compreensão básica de como opera a Natureza, dois físicos russos, Viktor Gorshkov e Anastassia Makarieva, descobriram como a floresta é vital neste ciclo da água[9]. Por conta de sua altura, forma e arquitetura, as árvores são evaporadores muito eficientes. Uma árvore grande chega a transpirar mais de 300 litros de água num dia, uma quantidade que somada para toda Amazônia resulta num rio voador de vapor que transporta mais água do que o portentoso rio Amazonas. O que eles descobriram é que o vapor de água colocado pelas folhas no ar empurra o ar para o lado, aumentando a pressão ali. Depois, lá em cima onde fica mais frio e onde estão atuando as partículas de condensação, o ar úmido perde vapor que volta a formar água líquida nas gotas, sumindo da parte gasosa, diminuindo assim a pressão. Essa diminuição da pressão promovida pela condensação da água proveniente da floresta é como um aspirador que suga o ar da superfície para cima, mantendo a evaporação e as chuvas. Como o ar sugado da superfície precisa ser reposto, a sucção se transmite horizontalmente pelas terras até o oceano, formando assim a bomba biótica que faz os ventos soprarem de longe, trazendo a água do oceano para dentro do continente. Aí, a floresta que trouxe os ventos úmidos e as chuvas se beneficia alegremente, devolvendo mais água e seus perfumes para o ar, permitindo e favorecendo mais vida, num ciclo virtuoso infindável.



“A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo. O dos seres humanos é muito menor: vivemos e morremos depressa. Se não a desmatarmos, a floresta não morrerá.”



Em novembro de 1992, um grupo congregando mais de 1.500 cientistas saídos do topo da lista de maiores da ciência, publicou um apelo intitulado Alerta dos Cientistas do Mundo para a Humanidade:


"Os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão. Atividades humanas infligem danos severos e frequentemente irreversíveis ao ambiente e a seus recursos vitais. Se não reavaliadas, muitas das nossas práticas correntes colocam em sério risco o futuro que queremos para a sociedade humana, e assim podem alterar o mundo vivo de tal forma que este será incapaz de dar suporte para a vida da forma que conhecemos. Mudanças fundamentais são urgentes se quisermos evitar a colisão que nosso presente curso irá trazer... Não temos mais que uma ou algumas décadas antes que a oportunidade de desviar as ameaças que enfrentamos agora venha a se perder e as perspectivas para a humanidade venham a ficar imensuravelmente diminuídas. Se uma vasta miséria humana precisa ser evitada e se o nosso lar global neste planeta não pode ser irremediavelmente mutilado, exige-se uma grande mudança em nossa atitude com relação a Terra e sua vida.”


Apesar deste e outros alertas partirem da ciência, infelizmente a arrogância e a imaturidade ao longo dos últimos séculos de desenvolvimento reducionista permitiram e estimularam a humanidade a extrapolar os limites da vida, e com isso levar o planeta a uma crise espantosa. Mas dentro da própria evolução do conhecimento científico, com a recente reconexão das disciplinas, começa a emergir a poderosa verdade singela, de respeito à vida, que a civilização tecno-materialista esqueceu e que agora terá que reaprender. E neste particular os Yanomami e outro povos indígenas têm muito a ensinar.

Quando por primeira vez escutei a declamação (porque também é um poema) deste texto do Davi Kopenawa, em dezembro de 2006, fui acometido por forte emoção e enorme assombro. Como era possível que os Yanomamis, que do meu conhecimento nunca desmataram extensivamente suas florestas nem desenvolveram pesquisas científicas como nós fazemos, soubessem das consequências do desmatamento, das ligações entre os aromas e as chuvas entre tantos outros avançados saberes que tem? Encontrei o Davi um tempo depois e lhe perguntei diretamente, como sabiam tais coisas, se para a ciência chegar próximo a este conhecimento eram necessárias décadas de suor, milhares de cabeças pensando, supercomputadores calculando, laboratórios analisando, satélites imageando. A singela resposta dele foi aproximadamente: “os sábios espiritos da floresta nos ensinaram e nós não nos esquecemos.” Se existe um caminho mais curto, da síntese do saber e do respeito pela complexidade da vida, quanto poderemos evoluir como civilização global quando reaprendermos a humildade e re-habilitarmos a receptiva intuição?




Bibliografia


Albert, B.; Milliken, W.; Goodwin-Gomez G. Urihi , A terra-floresta yanomami. ISA, IRD, 2009.

Koren, I.; Kaufman, Y. J.; Washington, R.; Todd, M. C.; Rudich, Y.; Martins, J. V.; and Rosenfeld, D. The Bodélé depression: a single spot in the Sahara that provides most of the mineral dust to the Amazon forest. Environ. Res. Lett. 1, 2006.

Makarieva, A. M.; Gorshkov, V. G. Biotic pump of atmospheric moisture as driver of the hydrological cycle on land. Hydrology and Earth System Sciences, 11, 1013-1033, 2007

Wilson, E. O. Biophilia, the human bond with other species. Harvard University Press, 1984.



[1] Este texto foi extraido do Livro Manejo do Mundo, Conhecimentos e Praticas dos Povos Indigenas do Rio Negro, publicado em abril de 2010 pelo Instituto Socio Ambiental, ISA, em associacao com a Federacao das Organizacoes Indigenas do Rio Negro, FOIRN.

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[2] Antonio Donato Nobre é pesquisador pleno do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia, INPA, e pesquisador visitante no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE

[3] Fórum Indígena Amazônico sobre Mudança Climática, COIAB, COICA, FOIRN, CIR, CNS, INPA, IPAM, IPAAM, IBAMA, GTZ, GREENPEACE, SEDUC/AM, FEPI, CPT, CIMI, UFRJ, TNC, PDPI PDA/PPG-7, Aliança Amazônica, Museu Nacional

[4] Trocas de carbono da floresta com a atmosfera e beneficios para populações indígenas.

[5] Anchorage, Alaska, 2009.

[6] Albert. B. et al., 2009.

[7] Wilson, E.O.,, 1984.

[8] Koren, I. et al., 2006

[9] Makarieva et al., 2007.

01/04/2010

Amazônia: boi ou florzinhas?

14/01/2010

O Acadêmico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, 80 anos, diretor do Instituto de Pesquisas em Patologias Tropicais de Rondônia, publicou este interessante artigo na revista /Nosso Caminho/, de Oscar Niemeyer.

"Oscar Niemeyer me pediu há meses um artigo sobre política de Ciência e Tecnologia na Amazônia para a revista que ele e Vera Lucia Niemeyer criaram. Tenho retardado a tarefa, um pouco por preguiça e um pouco também porque, no fundo, eu sigo o exemplo dele Oscar. Gosto de fazer e não gosto de falar sobre o que faço, menos ainda sobre o que os outros fazem ou devem fazer...

Entretanto, nas últimas semanas desse ano 2009, experiências pessoais que atravessei me convenceram de que eu tinha alguma coisa a dizer sobre políticas de ciência e tecnologia para a Amazônia. Não se trata de nada relativo a biotecnologia aplicada a tão celebrada biodiversidade amazônica, nem sobre o desenvolvimento de programas sobre tecnologias de vanguarda, como as que estamos tentando desenvolver em nosso Instituto. Trata-se de algo muito mais terra a terra, que interessa a mim mais como jardineiro decorador do que como cientista e que me levaram a experiência que aqui transcrevo.

Tudo começou com minha pretensão de criar um jardim decorativo, com flores, no condomínio da casinha em que vivo em Porto Velho. Coisa de velho saudosista. A casinha é uma das 23 de um condomínio fechado, casas térreas, com pequeno terreno na frente e algum quintal nos fundos. Há uma grande área central, gramada, onde as crianças e os jovens das residências jogam o futebol nos fins de tarde, quando voltam da escola.

Tenho tentado, sem sucesso, convencer os sucessivos síndicos a criar alguns canteiros de flores no terreno central e arborizar os entornos para criar áreas de sombra e repouso. Para que as mamães, numerosas no condomínio, tragam seus bebês para gozar o ar fresco do entardecer e os velhinhos(as), como eu e outros(as), venham bater papo e descansar. Deixar apenas pequena área de terreno para o futebol das crianças menores, evitando que as que estão crescendo transformem a área em sitio de algazarras e confrontações esportivas violentas.

Árvore e canteiro de flores são coisas fora do interesse dos condôminos. A maioria cimentou ou ladrilhou os terrenos da frente, estendendo a cobertura dos terraços, com telhados para proteger da chuva os vários carros de cada residência. Árvores então, nem pensar. Entre as únicas quatro do condomínio, conta-se uma pobre jambeira que nasceu escondida a um canto do terreno central e sobreviveu não sei como. As três outras fui eu que plantei e cuido: um ipê no jardim da frente, uma mangueira e uma cibipiruna no quintal do fundo. Eu tenho sempre assinalado aos síndicos que, se cimentarem toda a área descoberta, o condomínio vai terminar, como a cidade de São Paulo, virando piscina a cada chuva mais intensa, sem vias de absorção e escoamento para a água que cai.

Já que não era ouvido, decidi criar meu próprio jardinzinho florido. Nada muito ambicioso, apenas um canteiro de três metros quadrados para os quais fui procurar flores adequadas nas cinco chácaras de plantas decorativas que se abriram em Porto Velho nos últimos anos. Nelas as florzinhas não são prioridade. Encontra-se apenas variedade de arbustos de equissórias, nas suas versões vermelha e amarela, muito procuradas principalmente para fazer as cercas vivas de que, como as trepadeiras, os rondonienses são grandes consumidores. Preocupação dominante de sinalizar com precisão o limite da propriedade com cercas vivas e menos vivas, de preferência com arame farpado. Enfim, para isso serve a equissória. Florzinha mesmo, para fazer canteiros, muito raro.

Mas nessa lida de freqüentar chácaras, a procura das florzinhas, fui ficando conhecido dos chacareiros e, finalmente, um belo sábado, numa das chácaras, tive a boa surpresa: o chacareiro tinha encomendado em São Paulo e me oferecia 50 mudas de caroline a dois reais cada que aceitei na hora. Quando fui buscar a encomenda puxei conversa, começando por perguntar seu nome.

- Fanker, me diz ele, Herman Fanker.
O nome me pareceu de origem alemã, o que correspondia também ao fenótipo, pensei logo que ele devia ser catarinense e continuei.
- Parabéns, meu caro senhor Fanker. O senhor é dos poucos nessa terra que trata o reino vegetal de modo positivo e respeitoso. Em geral aqui os vegetais nativos são cortados e queimados. O senhor é exceção, pois produz e multiplica vegetais e os adiciona aos nativos, difundindo a representação deles entre nós. Felicitações.
- É de família, responde Fanker. Meu avô já tinha sitio em Santa Catarina e produzia rosas e orquídeas.
- Orquídeas!? digo eu. - Orquídeas em Rondônia são subprodutos das castanheiras e gravatás e tratadas a moto-serra. O senhor está cultivando orquídeas?
- Meu irmão está montando a galeria, as estufas e serras no sítio em Candeias para cultivá-las. E estamos tentando adaptar algumas colhidas na floresta. O problema é que já tem pouca floresta por perto e é preciso ir além de Guajará Mirim para achar orquídeas.
- Em todo caso, meus parabéns. E por falar nisso, quantos hectares o senhor tem aqui.
- Não chega a meio, apenas 4.800 metros quadrados.
- E quantos empregados o senhor tem?
- Oito.
- Oito empregados aqui? E no sitio do seu irmão?
- O sitio é nosso. Somos sócios. Três irmãos. O sitio de Candeias tem quase três hectares. Um hectare e meio de mata original que conservamos. Tem castanheira, gravatá, sucupira e outras. Temos até algumas seringueiras. A idéia é usar para adaptação das orquídeas e árvores floridas da mata. Temos mais seis empregados. Para produzir as mudas de plantas decorativas daqui da sede e também para a horta. Produzimos hortaliças e frutas para a família e ainda vendemos alface, tomate, pepino para um supermercado.
- Meus parabéns ainda. Quer dizer que com meio hectare aqui e mais dois e meio em Candeias os senhores sustentam três famílias e ainda 14 empregados. Eles são declarados?
Vejo que o senhor Fanker hesita um pouco... depois afirma, com ar pouco convincente
- Quase todos.
Faço rapidamente meus cálculos de cabeça: 14 empregados pagos com salário mínimo fazem 400 x 14 empregados x 13meses = 72.800 reais anuais. Digamos que dos 14 empregados seis sejam declarados. São mais R$12.400 em direitos trabalhistas. Chegamos aos 84 mil reais por ano. Arrisco perguntar.
- E o senhor e seus irmãos... vivem também dos rendimentos do sitio e da chácara?
- Meus dois irmãos eram empregados do INCRA quando chegamos. Agora, um deles pediu demissão para se dedicar às orquídeas. Só o menor continua empregado.... por enquanto.

Vejam só! Admirável! Refaço meus cálculos de cabeça. Uma família como a do senhor Fanker, que eu vejo bem vestido e bem apessoado, não pode viver sem retirar ao menos 2.000 reais mensais dos rendimentos do seu negócio. Isso faz ainda para as duas famílias, pelo menos 4 mil vezes 12, ou seja 48.000 reais. O rendimento da sitioca mais a da chacarita de flores dá, portanto, um rendimento mínimo de 130 mil reais por ano para sustento das famílias dos donos e dos empregados, sem contar os direitos trabalhistas de empregados, impostos municipais, estaduais e federais a pagar, compras de fertilizantes, sementes e agrotóxicos, mais os equipamentos de agricultura. Forçoso acrescentar ao menos 20 a 30 mil reais por ano, o que representa mais de 150 mil reais no seu total. Assombroso! Não me retenho e lanço a
provocação.
- Quer dizer, senhor Fanker, que os seus três hectares de produção lhe dão um rendimento de 50 mil reais por hectare por ano!
Ele me olha surpreso e depois vejo, pelas rugas que surgem na testa, que ele também refaz seus cálculos.
- Não chega a tanto, diz de repente. Pela rapidez da resposta eu vejo que, provavelmente, me enganei para menos e não consigo reter nova provocação:
- Mas dá para viver bem, suas famílias e os empregados.
- Vai-se vivendo, vai-se vivendo, concluiu ele.
Eu continuo na minha linha investigatória.Agora me interessa comparar a atividade deles, cujo valor agregado me parece de excelente nível, com o nível de rendimento da pecuária intensiva, a grande responsável atual na Amazônia pelo desmatamento, pelos impactos e degradação ambiental. Volto correndo para casa para abrir, no computador, o sitio IBGE. O sitio IBGE é algo de fantástico. Se eu fosse o Ministro de Educação, obrigaria as escolas secundárias do país a utilizar o sitio para ensino de todas as disciplinas. Da Aritmética e Matemática até a Sociologia e a Filosofia Chego logo ao sitio e me deleito a contemplar dados comparativos entre Rondônia e Santa Catarina. Escolhi Santa Catarina para, mais tarde, voltar a falar com meu chacareiro Fanker. É um estado rico do sul, com grande atividade agropecuária. A superfície de 96 mil km2 é menos de 1/3 de Rondônia e a população de 5,9 milhões é quatro vezes maior. Para fazer
comparações será necessário sempre ter em conta esses fatores. Reduzir dados ao "per capita". Mas, isso dito, o que me interessa é comparar a rentabilidade da atividade pecuária nos dois estados e isso sempre é possível.

Começo a registrar. Segundo dados de 2007, a população de bovinos é de 11 milhões em Rondônia contra 3,5 milhões em Santa Catarina, o que dá, considerando o numero de estabelecimentos agropecuários, 137 animais em média por estabelecimento em Rondônia e 24 em Santa Catarina. Examino o item sobre Contas Regionais do Brasil e vejo que a renda da pecuária em Santa Catarina é maior que a de Rondônia. Como se pode entender isso? Que a atividade de pecuária em Santa Catarina possa ter um rendimento maior que o de Rondônia, quando o rebanho de Rondônia é 3,2 vezes maior que o de Santa Catarina? Entretanto, é o que ocorre: 1,8 bilhões de reais em Santa Catarina contra 1,4 bilhões em Rondônia. Fuçando os dados do IBGE descubro a razão. A explicação encontra-se no item Censo Agropecuário 2007. Na multiplicidade de atividades produtivas associadas à pecuária em Santa Catarina. Para começar, a produção de leite, para um número praticamente igual de vacas ordenhadas é 2,6 vezes superior em Santa Catarina, com uma média de 2.300 litros por animal por ano contra 714 litros em Rondônia. Além disso, o número de cabeças de suínos é 26 vezes maior em Santa Catarina (6,5 vezes maior em valor per capita). O número de galinhas, de 1,7 milhões em Rondônia, é dez vezes menor do que em Santa Catarina (2,5 vezes menor per capita) enquanto o número de ovos é 18 vezes menor (4,5 vezes menor per capita). Tudo isso explica a rentabilidade menor da atividade produtiva na pecuária em Rondônia.

Além disso, os dados do Censo Agropecuário atestam carências, como a ausência em Rondônia de produção de coelhos, de codornas e de seus ovos, que são altamente rentáveis em Santa Catarina. Mais do que isso, a ausência de atividades como a relativa a mel de abelha, com a produção de 3,5 toneladas anuais em Santa Catarina e apenas incipiente em Rondônia. Assinale-se que a produção de mel, como a de oleaginosas, entre outras, tem direta repercussão em atividades de alto valor agregado na industrialização e comercialização de produtos alimentares. A caracterização está feita. Em Rondônia, grandes propriedades, criação extensiva de gado bovino e ausência de atividades que exigem mão de obra: criação de porcos, galinhas, ovos, codornas e coelhos, produção de mel. Mão de obra empregada na pecuária em Rondônia não existe. Apenas alguns peões se ocupando do gado.

Porque então insistir na produção extensiva de gado bovino? Seria ela de rentabilidade interessante? A análise de dados do Ministério da Agricultura sobre comercialização de carne permite mostrar que sua rentabilidade é extremamente baixa. O valor da carne bovina in natura, depois de oscilar abaixo de 50 reais, nos últimos anos, atingiu, antes da crise global atual,
valores de 80 a 90 reais a arroba. Considerem-se dois fatos: (i) o limite de abate, determinado pelo Ministério da Agricultura, é de 16 arrobas para o animal; (ii) o gado criado extensivamente em pastagens naturais leva em média quatro anos para atingir esse peso. Nesse caso, os 11 milhões de cabeças de gado em Rondônia proporcionam um abate de 2.750 mil reses por ano, na melhor das hipóteses. O rendimento seria de 2.750 mil x 16 arrobas = 44 milhões de arrobas, que ao preço de 90 reais por arroba chega a 3,9 bilhões de reais.

Esse valor ideal da produção é, entretanto, o máximo potencial e na verdade é muito menor, devido a perda de animais, doenças, problemas de transporte etc. Mas digamos que fossem quatro bilhões de reais, o que parece muito e vem merecendo grande interesse da parte do governo federal em função das exportações. Esse total representa um valor produtivo agregado extremamente baixo. Se dividirmos quatro bilhões pela extensão de 8,8 milhões de hectares dos estabelecimentos agropecuários, chegamos ao valor agregado de 454 reais por hectare. Supondo que dos 8,8 milhões de hectares de estabelecimentos agropecuários apenas a metade, isto é 4,4 milhões de hectares sejam dedicados à pecuária bovina (e sabe-se que é muito mais), o rendimento por hectare não ultrapassaria o valor de 1.000 reais.

Neste próximo fim de semana irei buscar umas mudas de florzinhas na chácara do senhor Franker e direi a ele que me enganei. Que o rendimento por hectare da atividade dele com plantas decorativas não é 25 vezes maior que a da pecuária extensiva. É 50 a 100 vezes maior! E vou mostrar-lhe os cálculos. Se ele me perguntar como se explica isso eu vou lhe mostrar.
- Em Rondônia, seu Franker, quem tem um hectare e quer criar boi morre de fome, quem tem dez e insiste é pobretão. Quem tem 100 hectares e só precisa de um par de peões para tocar o gado começa a sair do buraco e tem uma renda mais próxima da sua. Mas quem tem 1.000 hectares fica rico. Agora, naturalmente, o valor agregado para o país é muito pequeno, não cria emprego nem distribui renda, ao contrário do que sucede com sua empresa. Por isso é que eu lhe dei minhas felicitações.

Quando eu efetivamente lhe expliquei tudo isso, no sábado seguinte, o senhor Franker ficou uns instantes entre perplexo e incrédulo. Depois de refletir alguns minutos, argumentou:
- É... mas se todo mundo se meter a fazer plantas decorativas, vai haver concorrência e baixa a renda.
- Muito bem seu Franker, o senhor está ficando craque em economia política. Mas reflita um pouco. Não é só de planta decorativa que vive o homem. O senhor já pensou no que se perde ao deixar de produzir, como o senhor mesmo disse, as orquídeas, por exemplo. Tem lugar para muita gente. As rosas que se vendem em Nova Iorque vem todas da Colômbia. Sustentam numerosos produtores. As bananas ouro também, que se vendem nos Estados Unidos e na Europa, empacotadinhas em celofane. E alem disso, já falamos no mel de abelhas. As abelhas amazônicas, como a /Melípona/, fazem mel muito agradável, não tem ferrão e o gosto é diferente do mel da /Apis/ européia. Não se explora isso de maneira coerente. O senhor já sabia que comerciantes do Japão e da Malásia são os maiores vendedores de peixes decorativos. Os peixinhos coloridos de todas as formas são muitos deles originários do Brasil e da Amazônia. E as frutas tropicais, como o cupuaçu e os araçás de vários tipos. Não para vender in natura, mas com a produção de extratos, geléias, concentrados etc. Sem falar dos destilados alcoólicos. E os palmitos, e os pássaros decorativos. A policia federal vive prendendo contrabandistas de pássaros capturados na floresta. Devia-se, evidentemente, produzi-los em cativeiro para comercialização. Assim como as tartarugas, as pererecas e tudo o que se vê por aqui.

Parei por ali. O senhor Fanker já parecia cansado de tanta conversa. Vou continuar a conversa noutro fim de semana. Também, só faltava mostrar a ele que tudo isso é fruto da ignorância. E não quis assustar o homem com a perspectiva que se abre (ou se fecha) agora com a nova crise econômica-financeira mundial. Porque a crise já chegou no boi e vai agravar a situação dos produtores. Em São Paulo, no inicio do século 20, também, todo os produtores agrícolas se meteram a produzir café. Foi tanto café que quando se deu a crise de 1929, o valor do café caiu a zero e queimou-se café nas locomotivas. Foi um escândalo mundial. E a pecuária extensiva é a que vai sofrer agora. O preço do boi, por falta de mercado, despencou e no momento que escrevo foi para 50 reais a arroba. Os frigoríficos fecham um após o outro. E o que se vai fazer com tanto boi no pasto?

A experiência da crise de 1929 talvez seja instrutiva para Rondônia e para a Amazônia. Diversificar as produções agrícolas e pecuárias. Estimular a criação de pequenos e médios estabelecimentos. Mas, para isso falta escola. Faltam cooperativas. Em São Paulo nos anos 1930, enquanto se queimava café nas locomotivas, criavam-se as escolas agrícolas, fundaram-se os Institutos Agronômicos, como o de Campinas, o Instituto Biológico e outros. O prédio da atual Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, uma das mais conceituadas do país, foi construído para ser uma escola agrícola para técnicos de nível básico e médio. Se não se criarem escolas agrícolas, escolas técnicas de Agricultura e Pecuária, nunca teremos pequenos e médios agricultores e pecuaristas competentes, capazes de desenvolver a Agropecuária moderna, dinâmica e diversificada que existe em Santa Catarina.

Os grandes estabelecimentos agropecuários de Rondônia e do Pará devem deixar as atividades de pecuária bovina extensiva, associadas à atividade madeireira de desflorestamento e degradação ambiental. Mas não devem largar a monocultura de boi pela monocultura da cana de açúcar ou da soja na espera da próxima crise."

http://www.revistanossocaminho.com.br/pagina_01rev02.htm

http://www.abc.org.br/%7Elhildebrando

http://www.abc.org.br/www.ibge.gov.br/estadosat/perfilphp?sigla


texto encaminhado pela Dra Ima Vieira, do Museu Goeldi para a rede GEOMA