Proposta para a Construção de um Ecossistema de Empreendimentos Sustentáveis na Amazônia

22/06/2009

Governança na Amazônia, parte II: Desconstruindo décadas de estímulos equivocados

Onde estão então os equívocos das políticas públicas?

De fato, leis, governo, polícia, justiça, ciência, satélites, mídia parece tudo muito bom. Quem não acompanha o noticiário sobre desmatamento e eventos policiais nas fronteiras rurais da Amazônia poderia dormir tranqüilo.

Mas quem está informado das notícias sabe que a situação de ocupação na Amazônia é caótica, a insuficiência de governo nas fronteiras é gritante, os crimes ambientais e sociais perpetrados são hediondos. Um simples evento de desmatamento ilustra o descompasso entre as proposições e as ações efetivas. Em 2005 uma área desmatada de 100.000 ha dentro de reserva ambiental na região da terra do meio, no Pará, foi flagrada por fiscais do IBAMA, sendo que o mandante era um conhecido grileiro de terras. Com o sistema DETER fornecendo alertas sobre desmatamentos em tempo real como os fiscais chegaram nesta área tão grande somente depois da última árvore tombar? O infrator não foi preso pelo crime flagrante e as multas salgadas aplicadas muito provavelmente não serão pagas. A grande morosidade na justiça comum do Pará acaba sendo aliada dos grileiros já que as multas perdem sua validade após 5 anos. Além disso, mesmo as poucas multas que o IBAMA recolhe terminam na sua maior parte caindo na caixa sem fundo do tesouro nacional, retornando uma ínfima parte dos recursos para fortalecer as atividades de fiscalização do próprio IBAMA. Esta temática, para fazer justiça a suas nuances e complexidades, requereria espaço muito superior ao que dispomos neste trabalho. Abreviando então consideremos que as ações de legisladores, governo, justiça, ciência e outros setores demonstraram grande boa vontade e criatividade, produzindo precedentes impressionantes em termos de capacitação para coibir a depredação e estimular um desenvolvimento social e ambientalmente correto. Porém, estas ações tem sido grassamente insuficientes e estão ainda muito longe do mínimo requerido para gerar alteração de rota.

Entretanto, não seria justo creditar às instituições públicas de hoje toda a responsabilidade pelo descarrilamento do trem do desenvolvimento sustentável na Amazônia. Políticas públicas anteriores e mesmo ancestrais explicam a maior parte do desastre em curso. Assim é essencial que esta herança seja adequadamente compreendida para que ações específicas e eficazes possam ajudar a desconstruir sua inércia, desacoplando o equivocado movimento pretérito da evolução futura correta que se quer. Este desacoplamento é também essencial para a liberação das instituições do papel de bombeiros, continuamente absorvidas que estão no caos da fronteira, roubando-lhes estas atividades precioso tempo que deveria estar sendo aplicado em novos projetos e experimentos de sustentabilidade.

Historicamente as principais forças propulsoras explícitas na ocupação da Amazônia foram a abertura de estradas e o estímulo para colonização com ênfase em pastagens. Madeireiros, mineradores e agricultores representaram forças coadjuvantes significativas. Mas é importante não deixar-se confundir pela obviedade destes processos e atores. Talvez mais revelador seja identificar que fatores institucionais e políticos subjacentes determinaram a auto-evidente eficácia da ocupação em desconcertante contraste com a deficiente aplicação das leis, a insuficiente ação sobre alertas de altíssima qualidade, a inocuidade de tantos planos e iniciativas na direção da sustentabilidade. Até o final dos anos 1980 o processo de ocupação era inteiramente artificial, ou seja, sem subsídios e campanhas pesadas o avanço sobre a selva não era auto-sustentado. Estes fatos devem constituir evidência de que instituições e políticas públicas seguiam uma agenda onde o estímulo ao processo de ocupação era de fato resoluto. Porém, a expressão do poder público sempre privilegiou a exaltação das medidas de contenção ao desmatamento, de busca de sustentabilidade e de ações visando o controle público dos processos na fronteira. A única explicação possível para este paradoxo indica que as ações de estímulo à ocupação tinham um caráter subliminar. Reforça esta tese a desproporção entre os montantes financeiros disponibilizados pelos agentes públicos para ações ligadas à agenda subliminar contra aqueles disponibilizados para a agenda pública10. A montanha de dinheiro público aplicado no fomento à ocupação teve o mesmo efeito que atirar tambores de gasolina na fogueira, amplificando de maneira explosiva os processos e os problemas. Se os montantes aplicados na agenda subliminar houvessem entrado na agenda pública, como deveria por bem e por direito, é mais do que provável que hoje tivéssemos uma fronteira civilizada na Amazônia, pois como se viu o Brasil goza de excelentes leis e muitas iniciativas originais em termos de monitoramento, controle e desenvolvimento sustentável.

Assim, analisando em retrospecto, podemos desenvolver a convicção que o descontrole instalado hoje nas fronteiras rurais da Amazônia não deve ser atribuído a forças espontâneas, aleatórias e descomunais contra as quais nenhum governo poderia responder de maneira adequada. Portanto, faz-se mister trazer à luz a agenda subliminar para que a sociedade possa julgá-la. Enquanto esta agenda estiver ativa nos bastidores as políticas públicas tenderão a estar contaminadas pelas incongruências históricas descritas acima. Naturalmente que análises históricas, sociológicas e políticas mais aprofundadas são requeridas para demonstrar as sutilezas do complicado arranjo de forças que sustenta a agenda subliminar e dissimuladamente sabota a agenda pública. Mas aqui, no contexto de estratégias para o Fênix Amazônico, basta citar reação do governo federal em 2005 que ilustra bem o ponto em pauta. O agronegócio, que atua na Amazônia de maneira afinada com a agenda subliminar, envia uma carta dramática ao governo solicitando ajuda para salvar-se da falência e imediatamente é brindado com um pacote de mais de 9 bilhões de Reais. Que capitalismo é o nosso aonde empreendimentos privados, quando seu negócio vai bem, tem direito de privatizar o lucro, mas socializam os prejuízos quando seu negócio vai mal? Montante equivalente de recursos investido em ecossistemas de empreendimentos sustentáveis na Amazônia teria condições reais de gerar vigorosa atividade econômica, com respeito e consideração à sociedade e ao meio ambiente. Mas colocado para tapar o prejuízo do agronegócio vai dar sobrevida à economia primária de commodities, que é concentradora de renda e que, sem nenhum remorso, mete tratores com correntão na rica floresta. Um exemplo como este, pelas somas envolvidas, sugere que a agenda subliminar para a Amazônia continua atuante no governo, o que pode explicar a dificuldade na aplicação eficaz da lei e o desenvolvimento sério de projetos alternativos. A continuar este estado de coisas os esforços em caminhos alternativos vão continuar a receber do governo e das políticas públicas grande exaltação retórica, pouquíssimos recursos e não muito mais.

“Os ecossistemas provêem um amplo espectro de serviços para a as sociedades. Algumas formas de uso afetam a qualidade dos ecossistemas, reduzindo seu valor para outros usuários. Isto leva a um conflito de interesse que usualmente é resolvido pelo processo político, resultando em alguma forma de regulação” (Scheffer et al 2000). Como vimos, no Brasil o processo político explícito, atinente à coletividade, produz formas ideais ou muito boas de regulação, através de leis ambientais primorosas. Mas o obscuro processo político subliminar, que atende interesses de minúsculos grupos envolvidos diretamente nos ganhos com a exploração predatória da Natureza, gera fatos concretos contrários aos interesses da coletividade, financiado o processo com dinheiro desviado da própria coletividade. Trata-se, portanto, de um sistema decisório dissimuladamente parasitado, a exemplo de doenças onde vírus colonizam células antes sadias e sub-repticiamente transferem partes de seu código genético para o código genético das células hospedeiras, obrigando-as a trabalhar no interesse do vírus infestante, em detrimento do seu próprio bem-estar e interesse. Em casos de alta virulência, a sugação dos recursos do hospedeiro é tão grave que leva este à morte. No caso do desmatamento na Amazônia, que como visto atende aos manifestos interesses de pequenos grupos, os efeitos no clima já estão extrapolando a Amazônia e mesmo as fronteiras do país, o que pode gerar catástrofes ambientais com prejuízos econômicos sem precedentes.


Faz-se urgente uma reação de grande envergadura, com energia equivalente aos notórios “esforços de guerra”, que possa romper o ritmo usual dos eventos e mudar o paradigma para uma nova rota de desenvolvimento que consiga evitar a tempo o dano ambiental irreversível. Mas que estratégia teria chance de produzir efeitos na correção desta situação? Não se espere consciência e colaboração com o tal esforço de guerra dos grupos que tiram benefício no curto prazo do uso predatório. Tampouco se espere que o poder público parasitado consiga reagir à doença de conflito de interesses por si só, apesar das suas evidentes contradições internas e de todas muitas boas ações que patrocina. Sem uma demanda poderosa da coletividade lesada, a exemplo da reação febril e avassaladora do sistema imune contra a virose, o dinheiro que jorra nas transações nem sempre lícitas de bastidor fala mais alto. Mas, a reação avassaladora da coletividade é, infelizmente, o que menos se pode esperar, talvez por aquelas razões culturais que nos estigmatizaram como boa gente. Neste sentido ilustra bem a luta inglória travada para acabar com o fumo em aeronaves. Somente quando um indivíduo, que trabalhava na justiça, se sentiu lesado, entrou com uma ação civil pública, e obteve um mandato de segurança contra as companhias aéreas (ficaram obrigadas a proibir o fumo ou a criar dois ambientes estanques em cada aeronave, algo técnica e economicamente inviável) é que logrou-se eliminar o fumo dos vôos. A destruição da Amazônia (fumo) produz um dano difuso para a mal organizada coletividade, e o dano é universal inclusive contra quem destrói (ou fuma). Mas produz lucro concentrado e ganho (prazer) a curto prazo para os pequenos grupos envolvidos no processo destrutivo, que agem muito bem organizados e com eficiente lobby em Brasília. Talvez por isso seja tão difícil suprimir estes desvios (vícios).

Mas o exemplo da bem sucedida luta contra o fumo em locais públicos pode fornecer um caminho promissor para o Fênix Amazônico. Não precisamos esperar nem que a coletividade, nem que o poder público, nem que os grupos de interesse solucionem espontaneamente suas contradições e mudem seu comportamento. A operação mãos-limpas na Itália, promovida por um pequeno grupo de notáveis e inabaláveis promotores públicos, conseguiu acabar (ou suprimir) com a máfia italiana e suas ramificações nas instituições públicas, usando para tanto apenas as leis e a força oferecida pela saturação da opinião pública com o tema máfia. Portanto, é possível lançar-se uma campanha bem bolada que valha-se dos muitos argumentos lógicos apresentados e do arcabouço legal disponível para conquistar indivíduos em diversos níveis do poder executivo, do sistema de justiça, da iniciativa privada. Os elementos sadios do Estado favorecem a causa, a lei embasa e a opinião pública já se manifestou massivamente em favor da proteção da floresta. Todos os ingredientes para o pão do desenvolvimento sustentável já estão na tigela, falta somente o fermento vivo. Temos a convicção que ecossistemas de empreendimentos sustentáveis, como este que propomos neste trabalho, podem cumprir o papel de fermento. Com uma teia holística e dinâmica de idéias e soluções para guiar, com ações resolutas do poder público para implementar e resolver conflitos, e com resultados vigorosos aparecendo para consolidar e conquistar suporte, breve poderemos estar vendo o nascimento de uma nova civilização na Amazônia, evoluída, produtiva, perene e feliz.

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